EXPOSIÇÃO . UMA CIRCUNSTÂNCIA
UMA CIRCUNSTÂNCIA
Flávia Ribeiro
Período: 12 de outubro a 14 de dezembro de 2019
Livre para todos os públicos
Uma placa dourada apresenta pedaços de planta encravados no reluzente metal: algumas sementes pontiagudas e um pequeno graveto o qual bem poderia ter sido usado para grafar as letras que formam na placa a incomum palavra "ECTYPO". Derivada do grego antigo a palavra é formada pela junção de "ek" que significa "fora" ou "externalidade" e "typos" que significa "figura" ou "imagem". A palavra foi usada na filosofia dos séculos XVII e XVIII para designar o mundo da realidade externa, sensível e material. Ectypo, em arqueologia, designa uma espécie de impressão física capaz de produzir sua cópia por contato, uma espécie de matriz que fisicamente imprime suas imagens como na operação de um carimbo, de uma gravura ou da fundição de um molde. O historiador e crítico de arte Didi-Huberman para pensar a atualidade anacrônica do processo de impressão utiliza a curiosa expressão "aparência por contato" que pode ser compreendida como uma espécie de sinônimo para ectypo. Olhando para a placa dourada, pode-se perceber que os pequenos elementos da planta estão encravados na superfície como se tivessem sido carimbados, ou melhor, como se a placa fosse seu carimbo, pois ela não traz um baixo, mas um alto relevo da figuração. Pedaços de planta materialmente se impõem neste dourado, impõe-se em ouro como uma espécie de fóssil cristalizado e eternizado em uma dourada "aparência por contato".

O ouro delicadamente pontua a exposição. Há uma segunda obra da artista intitulada Duplo Figurado que pode nos ajudar a compreender a exposição. É uma imagem fotográfica de profundo negro que apresenta duas mãos segurando uma esfera dourada. O dourado e a pele da mão contrastam com o negro onde sutis distinções permitem entrever tênues dobras na escuridão. Jogos de tons extremamente próximos se diluem, produzindo dobras quase imperceptíveis a figurar o longo vestido que cobre por completo aquele ou aquela cujas mãos estão segurando a esfera.

A sua face também não é vista, vemos apenas cabelos negros e percebemos que se trata de uma pessoa que nos dá as costas. A dimensão do corpo na imagem é de um para um, isto é, o tamanho real de um ser humano. Além disto, a imagem está apoiada no chão e na parede, dando a estranha impressão de que em meio à escuridão literalmente exista alguém ali.

A reprodução de um para um de alguém seria uma cópia, seria uma impressão tiradas, talvez, da artista? Um ectypo, uma "aparência por contato", de sua própria pessoa? Quem sabe ela trajando um negro absoluto, mas cujas mãos brilham ao portar uma esfera dourada? Uma curiosa esfera que em uma espiral de pétalas espelha as mãos daquela que a produziu? Flávia Ribeiro é sem dúvida uma artista para qual a criação em muito se mistura ao fazer de suas mãos. Uma artista próxima ao prazer manual da produção da gravura, sobretudo, em metal cujas placas de cobre reluzentes são obscurecidas pela maneira negra e se tornam especialistas em produzir os mais variados, densos e aveludados tons de preto.

Suas exposições há um bom tempo não apresentam gravuras no estrito senso, porém a placa de metal, os tons de negro e o fazer manual continuam como especialidades de Ribeiro, contudo, agora, impressas em outros meios artísticos. Há, na longa bancada onde se encontra a placa Ectypo, uma série de esculturas em um tamanho compatível com o manuseio de nossas mãos. Obras em que podemos notar a cuidadosa manipulação da artista, cada pequena parte da superfície apresenta as marcas de seus gestos. Como o "toque de Midas" que tudo transforma em ouro, tais objetos por suas mãos são metamorfoseados em arte, mas em lugar do reluzente dourado são peças extremamente escuras onde os gestos se diferenciam no negro sobre negro.

São esculturas fundidas em bronze que recebem uma pátina negra. Elas formam estranhas estruturas a circunscrever um espaço vazio e vazado que se descola da bancada por meio de pequenas hastes como se tivessem pés, a maioria delas possui quatro hastes que as colocam de quatro como um pequeno animal. Porém sua forma vazada e aérea as reconduzem a uma figuração abstrata, são como que abstratos desenhos negros sobre um fundo que os contradiz em cor. Um fundo em sua maioria dourado, as patas deste animal abstrato se equilibram, ora evitando ora pisando sobre pequenos tapetes de veludo quase todos da cor amarela. Tapetes, compostos por finas tiras de veludo meticulosamente costuradas, ponto a ponto, pela artista. Mais que amarelos, eles soam dourado, pois sua textura aveludada brinca com a luz.

A artista denomina tais esculturas de Pré-objetos. Sabemos o que são objetos, convivemos com eles em nosso dia a dia, mas o que são pré-objetos? Se eles se dão como objetos, certamente então não são animais, a despeito das curiosas pernas que os retiram do chão e fazem com que avancem e interajam uns sobre os outros. A psicanálise denomina pessoas como objetos, objetos do desejo. Mas o que seriam pré-objetos do desejo? Poderíamos dizer que as peças desejam e mesmo penetram uma nas outras? Mas elas não eram meros desenhos abstratos sob um fundo de cor? Seres solitários, algumas duplas e mesmo um trio? Estaríamos, por meio de nosso olhar, desejando demais? A despeito de sua escala manual, os Pré-objetos evocam grandiosidade. Conversando sobre eles com uma arquiteta, imaginamos as obras como preciosas maquetes de construções monumentais, como suas formas constituem espaços fechados, as suas superfícies em outra escala ampliada bem poderiam ser paredes de uma estranha residência. Não, talvez seja melhor concebê-los como são, abstratos desenhos negros sob fundos dourados que ganham o espaço tridimensional.

Estas mãos, que tocam e imprimem gestos na escala de uma maquete, produziram um objeto de bronze ainda menor que os Pré-objetos e que os acompanha na longa bancada. A nova peça se chama Vazio e também circunscreve um espaço fechado, porém diferente das anteriores, este espaço novo não é vazado, mas possui uma base de bronze que a aterra na superfície. Neste caso, as superfícies negras deste vazio, de fato, evocam a uma casa, pois constituem uma miniatura das paredes que circunscrevem a residência da artista. Temos que a sua casa agora cabe em suas mãos e apresenta o mesmo vazio do denso negro presente nas demais obras.

Uma casa que, como suas obras, possui impresso os gestos da mão da artista, pois ela construiu, planejando cada detalhe deste ambiente em que convive e cria suas esculturas, desenhos etc.. Estar na casa de Ribeiro é também estar em seu ateliê cuja as paredes em escala menor são reproduzidas em Vazio, porém altas, longas e extremamente claras são as paredes em tamanho real de seu ateliê. Paredes que em torno de vinte e cinco anos acompanham as suas criações, recebendo furos de pregos por meio dos quais suas obras são penduradas. Desde a construção tais superfícies brancas não são retocadas, acumulando os gestos de suas experiências artísticas. Tais paredes são trazidas para o Instituto Figueiredo Ferraz, ou melhor, os seus gestos acumulados pelo tempo são transpostos: uma constelação de pequenos furos é fidedignamente impressa nas paredes do Instituto. Os furos criados pelo tempo passado servem para localizar, agora, novos pregos e ganchos que prendem linhas coloridas, tecidos translúcidos, placas de cor e pequenas peças laminadas e forjadas que são banhadas em ouro; objetos que pendurados compõem um longo desenho de tensões e alívios, de aglomerações e vazios a contornar as paredes. Podemos dizer que a familiaridade com os furos na parede de seu ateliê, mais que inspirou, co-criou tal obra instalada, (des)realizando a composição em um diálogo intencional com o acaso. A partir de buracos, tais gestos de cor e volume se descolam da superfície da parede, fazendo com que o desenho mova-se em direção à tridimensionalidade.

Noventa e nove mais um desenhos que outrora ocuparam as paredes de seu ateliê, agora, cobrem quase por completo os mais de treze metros de uma grande parede do Instituto, produzindo uma enorme superfície desenho que se espalha em escala arquitetônica. O seu desenhar, uma atividade constante da artista, possui algo muito forte de ectypo, pois como a própria revela, ela sempre trabalha a partir da observação ainda que os desenhos não cheguem a retratar o objeto original. Objetos muitas vezes escolhidos porque em si já não possuem mais suas formas reconhecíveis, como um lacre de vinho rasgado, um pequeno detalhe de uma teia de aranha, um mofo em um vidro, o instante do desabrochar de uma flor, um galho seco perdido de uma árvore, um inseto. Há essa impressão visual, ao mesmo tempo, evidente e misteriosa da externalidade de coisas que é transformada pelas mãos da artista em uma nova figuração. Porém, podemos ver figuradas em vários deles as estruturas negras dos Pré-objetos. Então muitos dos desenhos não seriam mais abstratos, mas uma figuração "realista" de objetos abstratos? Há uma transição entre os Pré-objetos e os desenhos e vice-versa, mas jamais somos capazes de determinar quem precede quem, do tridimensional para o plano ou o seu contrário. Estes desenhos também possuem uma vontade tridimensional, pois são folhas finíssimas que penduradas apenas pelas extremidades superiores, balançam interagindo com os deslocamentos de ar. Temos uma grande parede que, instalada por desenhos, flutua.

Uma segunda parede da exposição é coberta por folhas ainda mais finas que flutuam ainda com maior graciosidade. Em lugar de trazerem desenhos, as folhas são cobertas por completo por um pigmento dourado, são tênues planos na cor de ouro. O dourado da placa Ectypo que passou para a esfera apoiada nas mãos e, em seguida, para as pequenas peças pregadas nos furos, agora, irá cobrir uma extensa parede. O dourado instala-se produzindo talvez a mais radical aparência por contato, uma aparência ondulante e reluzente dada pela continuidade entre aquilo que nos toca e toca a obra: o ar. Ondas mecânicas de flutuações são produzidas na parede pois estas reagem ao deslocar de ar promovido pelo movimento de nossos corpos na galeria. Mecânica é o nome da obra, apresentando esta relação literalmente física e delicada de contato, reproduzindo não mais os gestos da mão da artista, mas dourados gestos da própria obra no ar.

O ouro mais uma vez se movimenta, entrelaçando-se com peso do metal negro, indo parar em um pequeno pote liso e dourado ao lado de pequenos potes negros e também lisos. Enfileirados em uma prateleira que se volta para dentro de uma escultura, estes potes contrastam com o corpo geral da exposição, pois suas lisas aparências por contato parecem ter sido realizadas por uma técnica mecânica, indicando a ausência da intervenção gestual das mãos da artista. Tratam-se de perfeitas reproduções mecânicas, mas não são dez e sim a condição impar de nove mais um, pois nove potes receberam a pátina negra, diferenciando-os deste "mais um" dourado. O descritivo nos revela que a obra por completa está fundida em bronze. Então o dourado que reluz seria mero bronze? Apenas a relação físico-química e superficial da pátina preta separa o que reluz do negro que absorve toda luz. Haveria dourado encoberto em todas as outras peças negras? A oposição entre a luz e sombras ganha outro significado. Esconder o ouro faz parte de sua construção estética, em que as matérias por meio de seu toque mudam suas aparências e mesmo propriedades. O bronze pesado seria, em pó, o pigmento a cobrir as leves folhas ao ar de Mecânica? Não sabemos ao certo se tudo aquilo que reluz é ouro, embora algumas das pequenas peças presas nos furos da parede, de fato, sejam deste metal. E a placa Ectypo, suas sementes espinhosas e o graveto estariam fossilizados em ouro?

A escultura com seus nove mais um potes é composta por duas grandes estruturas geométricas negras e lineares cuja tridimensionalidade, mais uma vez, conduz à experiência do desenho. Um plano maciço, um platô no ar, faz uma espécie de ponte entre as duas estruturas geométricas. No interior destas há os lisos potes e três estranhos acontecimentos pendurados, ganchos partem do meio das estruturas e seguram no ar os três elementos que em uma analogia vegetal podem talvez ser descritos como galhos que se bifurcam os quais recebem uma pátina mais amarronzada do que negra, remetendo ainda mais a uma condição de madeira, mas o metal dá a eles uma aparência mais rígida, mais para óssea. Três estranhos ossos vegetais pendem no ar, produzindo uma interioridade misteriosa na obra.

Há mais um curioso detalhe nesta geometria esqueleto, pois abraçando metade de uma das linhas negras do paralelepípedo, há uma superfície de veludo roxo escuro, uma terceira cor, envolvendo o negro que por sua vez envolve o dourado de bronze. Como se aquele veludo dourado e pisado pelo bronze dos Pré-objetos, fosse metamorfoseado na cor roxa e discretamente escalasse escultura para abraçá-la. Sendo curiosamente a cor roxa que na cultura ocidental está envolvida com a simbologia do luto. Entre esses ossos de vegetais e o roxo que abraça o negro, haveria uma especulação não apenas sobre a transformação, o contato e a aparência das coisas, mas sobre uma poética da finitude das coisas?

É uma composição um tanto desconcertante e bela ao mesmo tempo. Em uma das extremidades da obra, o pote de ouro e suas cópias negras apoiados em uma pequena prateleira; a outra extremidade é abraçada por um sutil veludo roxo; um sólido platô negro liga duas grandes estruturas geométricas lineares; e no interior destas, esqueletos de vegetais enganchados repousam no ar. Estranhamente belas e de difícil compreensão, tal obra, como as demais da exposição nos provocam a sentir e pensar. Entre os gestos negros que tudo devoram em sombra e o dourado que se move diluindo tudo em luz, abre-se Uma Circunstância.

Henrique P. Xavier
Sem título, 2014
Bronze e banho de ouro
15.5 x 63 x 56.5 cm - Foto: Arnaldo Pappalardo
Sem título, 2011
Cobre, banho de ouro e pigmento
23 x 5 x 2 cm
Rua Maestro Ignácio Stábile, 200 | Alto da Boa Vista | Ribeirão Preto | SP | Brasil
Terça a Sábado, das 14h às 18h | Entrada Gratuita
+55 16 3623 2261 | +55 16 3623 2262
Instituto Figueiredo Ferraz © Todos os direitos reservados