TODAS AS ESCADAS - REGINA SILVEIRAPeríodo: 25 de agosto a 06 de outubro de 2018
Livre para todos os públicos
Há anos venho explorando diversos tipos de ilusões e distorções de perspectiva com base em imagens de escadas, apropriadas de fotos banais que seleciono em revistas e catálogos variados. Inicialmente construí silhuetas com distorções de perspectiva, contidas em “dobras” de espaço de modo a que, conforme o Ponto de Vista do observador, pudessem ser corrigidas. Assim foram as escadas que mostrei na exposição Simulacros (MAC-USP em 1984) e as que pintei na forma de silhuetas, nos dois lados de um vértice de madeira, na vitrine da Franklin Furnace, em Nova York (1988).
No inicio dos anos noventa, com o crescimento de meu interesse pelo desenho arquitetônico, começam minhas primeiras indagações (visuais) sobre a percepção e significados que poderia atribuir aos patamares invisíveis a que as escadas representadas metaforicamente levariam os espectadores, sugerindo-lhes o acesso a possíveis abismos abaixo do nível do chão. Foi quando comecei a trabalhar com desenhos de escadas que capturava em plantas praticamente anônimas publicadas em revistas de Arquitetura e Construção. A esses desenhos construídos em perspectiva paralela (sem convergência e compressão), a perspectiva “normal” dos arquitetos e a única considerada operacionalmente confiável para servir de guia a construções no espaço real, apliquei inúmeras distorções de Perspectiva linear, de modo a transformar esses desenhos em representações instáveis, ambíguas e totalmente dependentes de pontos de vista do espectador. Minha intenção era ficar na “contramão” das funções normais do desenho arquitetônico e produzir com ele imagens que provocassem efeitos de vertigem e instabilidade espacial, quando enxertadas nos espaços reais da percepção. Por um numero estendido de anos, realizei inúmeras versões dessas escadas, em diferentes suportes, mas principalmente como objetos construídos em azulejos ou pintadas diretamente sobre paredes e chão de espaços de exposição.
A Escada Inexplicável 2 (1997) e Descendo a Escada (2002) se situam nesta genealogia, mas com uma plataforma própria de operações e significados, que me abriram outras vertentes de reflexão.
Descendo a Escada
Descendo a Escada tem origem em meu interesse pelos espaços construídos da Arquitetura, pelos códigos do Desenho Arquitetônico e pela exploração de espaços vertiginosos construídos por procedimentos de distorção de perspectiva.
Desde a segunda metade dos anos noventa venho elaborando inúmeros projetos com imagens de escadas descendentes, para realização em diferentes suportes: pintadas sobre paredes e chão, feitas com azulejos cerâmicos ou recortadas em chapas de plástico. Em quase todas essas escadas, construídas com distorções de Perspectiva, meu objetivo tem sido o de fazer experimentar visualmente os espaços que se dão à percepção como virtualmente profundos, fazendo supor a existência de possíveis abismos, abaixo do chão. As escadas, experimentadas como vertigem do olhar pela distorção aplicada, dariam acesso virtual a esses patamares inferiores, implicados ou apenas sugeridos na representação perpectivada.
Em 1996, na exposição “Grafias” no Museu de Arte de São Paulo (MASP), as escadas Graphos 2 e Graphos 3, em azulejos cerâmicos, exemplificam essas intenções. Nelas experimentei por primeira vez o efeito vertiginoso que podia resultar de distorções aplicadas a desenhos arquitetônicos normais, construídos em perspectiva paralela. Essas representações, confiáveis mas abstratas ao ponto de não implicar um observador, quando distorcidas pela perspectiva com pontos de fuga se transformavam em representações totalmente dependentes do ponto de vista.
A operação poética que deu fundamento a esses trabalhos foi a de instalar uma transgressão no interior dos códigos do desenho arquitetônico e ficar na contramão da significação, já consagrada e banalizada, daquelas representações de espaço, tradicionalmente confiáveis ao ponto de poderem servir de guia para uma construção arquitetônica segura, no espaço real.
Das muitas escadas planejadas e realizadas, a Escada Inexplicável 2, de 1999, é a referência mais direta à Descendo a Escada, de 2002.
O título e a numeração que dei à Escada Inexplicável 2 pedem uma justificativa. A Escada Inexplicável original, a número 1, é uma escada real, de autor anônimo, construída no final do século XIX na Igreja Na. Sra. de Loretto em Santa Fé, nos Estados Unidos, para ligar a nave ao coro. Recebeu este nome porque ali é celebrada como um mistério de design da construção de um elemento arquitetônico. A escada em helicoidal foi construída sem pregos, com madeira curvada, por um carpinteiro anônimo que chegou na igreja com seu burrico, carregando madeiras e um balde d’água – seu único instrumento. Quando a escada ficou pronta, o carpinteiro foi embora, sem pedir pagamento e sem dizer seu nome. Para as religiosas que tomam conta da igreja e da escada, que hoje é uma atração turística da cidade, esse carpinteiro era o próprio São José.
Quando visitei a Escada Inexplicável de Santa Fé já estava trabalhando no projeto de uma escada descendente, em caracol, na tentativa de fazer com que sua imagem, distorcida e espalhada pelo chão e paredes, pudesse proporcionar a ilusão de descida a uma espécie de “buraco negro” no espaço da representação perpectivada. Como a resolução – bastante difícil – deste trabalho estava implicando num verdadeiro emaranhado de procedimentos - todos curiosamente deixando sua marca no resultado final, a modo de um palimpsesto técnico, achei aquele “inexplicável” da escada de Santa Fé apropriado ao título de minha obra. Por isto ela é a numero 2.
O ponto de partida para conceber a Escada Inexplicável 2, foi uma série de fotografias que capturavam a visão do alto da escada em caracol da DIA Art Foundation, de Nova York. Deste ponto ao resultado final, que foi sua confecção como um recorte pintado sobre placas de poliestireno, de grande formato, o percurso técnico e conceitual foi este trânsito intenso por inúmeros modos de elaboração: fotografias montadas, desenhos de perspectivas distorcidas, testes em diversos programas de computador, cópias digitais complementadas com desenho à mão, maquetes em papelão, fotocópias gigantes e finalmente o desenho linear rigoroso, pintado com tira-linhas e pincel fino.
No processo de criação da Escada Inexplicável 2 foi a solução digital trazida pelo arquiteto Claudio Bueno que permitiu finalmente operacionalizar a construção da obra. Profundamente imbricada com meu pensamento, a solução aparentemente simples que realizou foi usar meu próprio desenho geométrico perpectivado como anteparo opaco.
A fonte de luz do programa digital, ocupando o lugar do ponto de vista do observador para a correção visual da obra conseguia projetar e espalhar a sombra do desenho nas paredes e chão da maquete digital, atingindo a configuração que eu desejara desde o ponto de partida.
Houve ainda a Escada Inexplicável 3, uma versão construída a partir de outra torsão e posicionamento do modelo. Este trabalho, dentro da mesma genealogia de imagens, foi realizado como uma espécie de negativo da escada anterior: em chapas de plástico branco, pintado com linhas negras.
A Escada Inexplicável 2 foi mostrada pela primeira vez na exposição Porque Duchamp? (Paço das Artes, SP, 1998) e logo depois (junto à Escada Inexplicável 3) na 2a Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 1999). No formato de uma pequena maquete em papelão recortado, para montar a Escada Inexplicável 2 foi também publicada pelo projeto Inserções, no Caderno T, da Revista Bravo (no. 3, janeiro de 2001).
A decisão de tomar este trabalho como base para uma investigação de suas possibilidades de se transformar num lugar para experimentar uma imersão interativa, em virtualidades de movimento e som, foi tomada em conjunto com o Itaúlab (o laboratório de mídias do Itaú Cultural), tendo em vista minha participação, por convite, na exposição Emoção Art.Ficial.
Nesta nova versão, com o nome de Descendo a Escada, a obra deixou de ser uma representação fixa e é agora a execução, virtual e interativa, da descida ao espaço escuro embaixo da escada. Estando o espectador/participante na escada, a experiência da descida é uma ação permitida pelo controle do movimento giratório e centrípedo do modelo digital. A animação toma como eixo o vértice dos três planos – o chão e o ângulo das paredes, onde a escada é projetada, em backlight, por três projetores de vídeo.
Em Descendo a Escada pode-se penetrar o desenho perspectivado da escada em caracol, com quatro andares. O desenho vai se desdobrando a medida em que se “desce” a escada, ao som de passos ritmados – de outros supostos usuários, ausentes – vindos de patamares invisíveis.
Realizada como programa para vídeo-projeção sincronizada, pelo Itaulab – laboratório de mídia do Itaú Cultural – e com sonorização digital por Paulo Hartman e Eduardo Verderame, Descendo a Escada agrega e atualiza os mesmos princípios – técnicos e operativos – presentes na realização tridimensional da Escada Inexplicável 2. O movimento e a interatividade que fazem a diferença entre os dois trabalhos permitem que a percepção do abismo, antes ótica e imediata, agora seja uma experiência gradual, sentida passo a passo. O campo óptico anterior, da escada construída como objeto, agora é um campo sensorial amplificado pelo som e pela possiblidade dinâmica de ocupar distintos pontos de vista, no próprio interior da animação digital.
Extraido de Regina Silveira, A Genealogia da Escada Inexplicável e o Embaralhamento dos Meios, in Midias, org. Elaine Caramella (et al.), Editora SENAC, São Paulo, 2009.
Desde sua abertura, o Instituto Figueiredo Ferraz almeja apresentar uma mostra individual de uma das maiores representantes da arte contemporânea brasileira, Regina Silveira. É, portanto, com muita alegria que preparamos, juntamente com a artista, esta mostra com obras dos anos 80 até o presente, pensada especialmente para o público de Ribeirão Preto, e jamais mostrada anteriormente.
Regina Silveira é uma das artistas mais respeitadas e queridas no meio cultural nacional e internacional. Além de trabalhar incansavelmente em seus inúmeros projetos apresentados em diversas cidades do mundo com obras realizadas do Japão à Nova York, Regina foi responsável pela formação de centenas de artistas, curadores, galeristas, todos seus alunos nos muitos anos que lecionou na FAAP/SP e na ECA/USP.
Esta exposição foi idealizada por Regina Silveira e a equipe do IFF, e pensada a partir da obra Graphos (Escada 2), 1996, pertencente à coleção Dulce e João Carlos de Figueiredo Ferraz. Por meio desta série conseguimos ter ideia de como funciona o pensamento da artista: fórmulas matemáticas, geometrias complexas, perspectivas impensáveis. É uma verdadeira viagem no mundo das formas, planos, linhas. E percebemos como a partir de um objeto simples, que faz parte de nosso cotidiano, Regina Silveira transforma nosso olhar e a forma como vemos o mundo.
Agradecemos ao Tobias Ostrander, curador chefe do Pérez Art Museum Miami, à Fundação Marcos Amaro e ao casal Fernanda Feitosa e Heitor Martins, pelo empréstimo das obras de suas respectivas coleções para a exposição TODAS AS ESCADAS.
Agradecemos também em nome do IFF e da artista, a colaboração da Galeria Luciana Brito.
Instituto Figueiredo Ferraz