POLAROID - ANA SARIO Período: 25 de agosto a 15 de dezembro de 2018 Livre para todos os públicos
A invenção da fotografia liberou a pintura da representação naturalista, criou ângulos e efeitos de luz dos quais certos pintores se apropriaram, democratizou o retrato, revelou uma dimensão natural da imagem, “não feita por mãos humanas”, como certas imagens sagradas, concedeu ao cadáver um direito à imagem, sendo sua difusão concomitante ao desenvolvimento de novas técnicas de embalsamamento. Poucos textos sobre o impacto causado pela invenção da fotografia foram tão influentes quanto A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica (Walter Benjamin, 1936). Uma pintura é um objeto singular, único, sua cópia é uma outra pintura. A essa unicidade, o autor chamou de “aura” e decretou que ela se perde com a reprodução técnica de imagens. Uma fotografia pode ser ampliada inúmeras vezes a partir do negativo sem que uma imagem seja mais autêntica do que a outra. O salto para o formato digital, que conserva, compartilha e reproduz imagens em forma de códigos numéricos, aprofunda as considerações de Benjamin sobre o novo contexto no qual não existe diferença entre o original e a cópia, as imagens não têm corpo nem lugar e as obras de arte perderam a aura.
A imagem fotográfica foi protagonista na época em que fotografias eram publicadas em jornais, revistas e livros, enviadas por telex ao redor do mundo, anterior à transmissão de TV ao vivo e via satélite. Em meio ao protagonismo da fotografia no século XX, as “polaróides” configuram um gênero híbrido. Encantavam pela aparição instantânea da imagem, pois prescindiam dos processos de revelação e ampliação, mas eram imagens únicas, desprovidas da “reprodutibilidade” das fotografias tradicionais, auráticas em certo sentido. Além disso, as fotografias instantâneas são mais suscetíveis à luz e ao calor, de modo que, embora possam durar muitas décadas se forem bem conservadas, estão condenadas a desaparecer, ao contrário das fotografias convencionais, das quais se preservam os negativos, e das imagens digitais, que são virtualmente eternas.
Desde as paisagens urbanas captadas em derivas pela Santa Cecíla e pela Vila Buarque, na região central da capital paulista (Lugar-comum, 2010), as pinturas de Ana Sario se inspiram no olhar fotográfico, como se as fotografias fossem uma espécie de caderno de campo. Certos enquadramentos das pinturas evidenciavam a origem fotográfica da imagem, apesar dos contornos, cores e pinceladas intensamente pictóricos. A fotografia representava, para aquelas pinturas, uma conexão com o lugar onde se fizera o olhar, como se as formas e os gestos fossem mais reveladores e expressivos do que meras fotos.
As pinturas produzidas para o Instituto Figueiredo Ferraz se apropriam do formato das antigas fotografias instantâneas e reproduzem imagens encontradas na internet. Ao proporcionar uma encarnação para a imagem sem corpo, a pintura salva-a da irreferência à qual está eternamente condenada no não-lugar das infovias, submetida à avaliação visual instantânea dos cliques, incompatível com uma fruição verdadeira. Por outro lado, a série de pinturas produzidas a partir de imagens encontradas nas derivas virtuais reconfigura o espaço ao redor, torna-o “heterotópico” conforme a formulação do filósofo Michel Foucault, isto é, um lugar que está fora de todos os lugares, um “contraespaço”.
Possuir um corpo é o pré-requisito para se ocupar o espaço, para se estar em algum lugar. Embora a vida digital se desenrole em meio a imagens sem corpos, as pinturas de Ana Sario incorporam essas imagens, de modo que elas possam transformar o espaço em, como afirmou certa vez Paulo Pasta sobre a sua pintura, “um lugar para se estar”.
Relações vivas entre formas, cores e pinceladas circunscritas pelo formato estranhamente familiar das fotografias instantâneas celebram a alegria de estar no mundo, apesar dos limites impostos pela finitude, por oposição à vida enterna das imagens digitalizadas no mundo virtual, a vida isolada dos vínculos reais com as pessoas e com o mundo, uma vida nua.
José Bento Ferreira
Polaroid #1, 2018 10,5 x 10,5 cm - óleo sobre madeira Foto: Everton Ballardin
Polaroid #2, 2018 10,5 x 10,5 cm - óleo sobre madeira Foto: Everton Ballardin
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