OBJETO VERSUS ESPAÇO, ABSTRAÇÃO VERSUS EMPATIACuradoria: Luiz Paulo Baravelli
Período: 07 de março a 25 de abril de 2015
Livre para todos os públicos
Escrevo algumas notas a respeito da exposição; notas soltas em vez de um texto corrido com começo, meio e fim; principalmente porque não quero chegar ao fim!
- Anedota (apócrifa?): o pioneiro cineasta russo Serguei Eisenstein fazia filmes muito longos, com três, quatro horas de duração. Quando os exibidores quiseram reduzi-los às duas horas de praxe, Eisenstein reagiu: “Se quiserem cortar meu filme, que cortem no sentido do comprido. Só vão ver meia tela de imagem, mas vão ter a história toda!”
- Creio que a palavra “retrospectiva” significa um olhar para trás. Talvez tecnicamente esta exposição seja isso, na medida em que inclui trabalhos dos últimos cinqüenta anos. Mas... estive lendo um pequeno livro que conta a trajetória de Piet Mondrian. Ele começou fazendo paisagens bem figurativas, lá por 1908, 1909 e foi gradualmente simplificando, depurando, geometrizando e, passando pelas abstrações que conhecemos, chegou até a síntese de “Broadway Boogie-Woogie”, em 1943. Imagino que teria sido impossível para ele em 1943 voltar a fazer uma pintura figurativa como as de 1909, 34 anos antes.
Sem me comparar a ele, é perfeitamente possível que em 2015 eu, com naturalidade, volte a fazer uma pintura como a “Luis XV”, de 1966. Estes 49 anos de intervalo não tornam (para mim, pelo menos) esta pintura obsoleta, esta palavra que o Modernismo tornou terrível. Com a noção retro assim em cheque, como se pode então dar um nome a esta exposição?
- “Se uma coisa começa, começou. Se começou, é assim mesmo”
Gertrude Stein
- Durante estes cinquenta anos trabalhei imerso em uma situação onde todo mundo sabe tudo e ao mesmo tempo ninguém sabe nada (eu inclusive). É um exagero retórico, mas dá para saber do que estou falando.
- Resumindo um texto de Christoph Asendorf: É comum nos estudos de percepção mostrar às pessoas o desenho em perspectiva isométrica de um cubo. Como as arestas são paralelas a vista não consegue se decidir se ele é côncavo ou convexo. Ver as duas situações ao mesmo tempo é impossível. Diz ele: “Se o cubo é visto como convexo ele se torna um objeto (abstração), se é percebido como côncavo é um espaço (empatia).”
Objeto versus espaço, abstração versus empatia pode ser uma porta dupla para entrar nesta exposição.
- Trabalho à noite porque é quando a luz está do lado de dentro.
- Se há um personagem de ficção com o qual me identifico é com a Sherazade.
- Para um visitante que não conheça meu trabalho esta exposição pode trazer uma perplexidade. A variedade do trabalho é enorme e, sem consultar as etiquetas, é difícil adivinhar as datas em que as obras foram feitas. Penso uma explicação que pode ser redutiva, mas serve para começar: lá atrás, no começo da década de 60 me propus a ter uma sensibilidade em vez de ter um método. Naquela época predominava aqui o concretismo, com suas regras, rigores e tabus. Visitando as exposições deles eu pensava : o que estas artistas fazem quando não estão pintando? Será que andam na rua, olham para as pessoas e as coisas? Por que isso não aparece no trabalho? Porque não enfrentam o mundo em sua riqueza e complexidade em vez de se confinar a uma clausura árida e metódica?
Quando completei 60 anos, a guisa de balanço fiz uma lista de minhas influências e referências, artistas de todo tipo que vieram antes de mim e com os quais aprendi algo. Entre os trezentos e tantos nomes, Millor Fernandes, com seus aforismos enganosamente simples: “Livre pensar é só pensar”, “Enfim, um escritor sem estilo”, etc. Li essas coisas ainda moço e adotei, porque me pareceu óbvio. E quando, juntamente com Fajardo, Nasser e Resende conheci Wesley Duke Lee, em 1964, percebi nele uma atitude semelhante. Sem hesitar o nomeei meu mestre e os dois anos de estudos seguidos de outros de colaboração e amizade foram decisivos para que eu escolhesse meu caminho. Desisti do curso de arquitetura (desistimos, todos os quatro) porque a noção de liberdade e autonomia que Wesley emanava, me “condenou à liberdade”, para usar a frase de outra pessoa de minha lista. Quando, mais tarde, já na década de 70 Fajardo, Nasser, Resende e eu fizemos a Escola Brasil nossa intenção foi colocar os alunos diariamente nesta situação de liberdade informada e consciente.
No meu trabalho pessoal no atelier, como na Escola, liberdade não significa falta de critério e que qualquer coisa valha. A liberdade significa também determinar o próprio território. Assim consciente e deliberadamente restrinjo meu trabalho a desenho e pintura, que é meu “soft spot”, a área onde me sinto confortável e eficiente. As experiências em três dimensões do início da carreira foram rareando porque percebi que as peças não resultavam escultóricas, mas pictóricas, como que pinturas e desenhos no espaço. Esculturas são coisas, objetos sólidos e concretos; percebi que o meu mundo é o mundo impalpável da imagem, filha da imaginação.
Liberdade gera autonomia e isso tem um primeiro preço: o isolamento. Não conheço outro artista que esteja fazendo um trabalho semelhante ao meu e assim prossigo sozinho. O segundo preço é uma decorrência: eu sou o assunto do meu trabalho. Dizendo assim parece cabotino e pretensioso, mas explico, com um exemplo: um repórter, vendo um fato qualquer, digamos um atentado terrorista, não pode ignorá-lo e vai relatá-lo com a maior objetividade possível evitando qualquer subjetividade. Já um artista tem uma espécie de dupla personalidade: ele é uma pessoa comum que coexiste no mesmo corpo com um artista, um ‘percebedor/fazedor residente’. O artista vai tentar perceber se esse fato realmente atingiu a pessoa. Se for sensível e honesto pode chegar à conclusão politicamente incorretíssima que não está se importando a mínima com o atentado, mas que naquele mesmo dia foi tocado inexplicavelmente por outra coisa completamente diferente, a sombra que uma árvore projetava no muro da casa e vai tratar disso. Ele não ignora o atentado, apenas percebe e deve ter a coragem de assumir que há um nível acima do óbvio. Um artista não é um repórter, não é um divulgador de boas causas nem um designer que precisa atender a solicitação de um cliente. Não tenho editor nem causas a defender e nem clientes, só minha sensibilidade. É difícil, às vezes.
São cinquenta anos dessa atitude que estão à mostra no Instituto Figueiredo Ferraz e nas duas unidades da Galeria Marcelo Guarnieri - Ribeirão Preto e São Paulo.
Luiz Paulo Baravelli