FRAGMENTOS DO REAL (ATALHOS) - FABIO MIGUEZCuradoria: Rodrigo Moura
Período: 10 de março a 05 de maio de 2018
Livre para todos os públicos
Para começar de algum lugar, caberia antes de mais nada apontar a natureza inquieta que percebo na pintura de Fabio Miguez na última década e meia em que a observei mais de perto. É como se, de maneira lenta e consciente, o artista tivesse colocado em dúvida uma série de pressupostos de sua própria prática, trazendo-a para searas se não estranhas a ela, ao menos inesperadas.
Em 2002, na exposição homônima na galeria 10,20 x 3,60, em São Paulo, Miguez levou sua pintura (que já havia ganhado contornos mais geométricos) para fora da tela, com planos transparentes de vidro e nacos de forma-cor no espaço. O espectador podia percorrer a exposição como se andasse numa pintura e o branco dos quadros tivesse se transformado no próprio espaço. Esse gesto teve algumas implicações nas obras seguintes. Por um lado, o espaço vazio das pinturas se tornou mais denso, com as massas cromáticas se destacando de maneira mais evidente e conferindo, por isso, um caráter mais diagramático à composição. Outro desdobramento se deu como uma implosão do espaço, em obras tridimensionais que assumem a feição de maletas (Valises), intrincados e diminutos complexos arquitetônicos de planos verticais e horizontais que se rebatem e complementam, podendo ser reconfigurados. A inclusão de palavras como campos autônomos de informação nessas obras também cria novas possibilidades de leituras intersemióticas, o texto assumindo um papel importante na interação das partes.
Em 2012, Miguez publica o livro Paisagem zero em que reúne sua produção fotográfica, dando pistas da relação de sua pintura com a representação do real. Produzidas desde meados dos anos 1990, essas imagens são como uma espécie de campo auxiliar da prática em pintura, começando com registros sistemáticos de efeitos atmosféricos do nevoeiro sobre o mar e de ondas quebrando nas pedras no litoral de Ubatuba (Deriva I, Mar Virado, 1993-95), que lembram suas pinturas mais fluidas da mesma época, chegando até fragmentos arquitetônicos nos espaços de suas exposições e vistas de suas próprias obras no ateliê (Deriva VII - Paisagem Zero, 2008-2012). Sobre elas, Miguez escreve: “no fim, tudo é paisagem”.
Nos Atalhos (2010 - em processo), algo parecido com esta formulação “tudo é paisagem” acontece. Essa grande série de pinturas em pequeno formato, que à altura da escrita deste texto já somam mais de 170 obras, condensa de modo pujante a produção recente de Miguez. As pequenas dimensões dão conta de uma prática quase diária de pintura, desocupada dos empenhos de tempo dos quadros de grande formato que o artista continua a produzir. Aqui ele isola determinados elementos de sua obra, criando pequenas unidades de linguagem que se singularizam em cada quadro – para depois se repetirem em subséries de variações formais e cromáticas. Nesses quadrinhos, há também uma certa dose de experimentação em relação à superfície, quase como se fossem demonstrações das técnicas domadas ao longo dos anos e empregadas na sua obra.
Se por um lado, parece claro que as pequenas pinturas não são estudos, elas não deixam de alimentar uma relação direta com as grandes telas. Curiosamente, essa relação não é de hierarquia, mas antes de complementaridade -- um elogio ao pequeno formato, onde os desafios surgem e desaparecem em tempos breves e sem a gravidade reservada aos processos temporais expandidos.
Muitas dessas pinturas guardam relação direta com a história da arte; recortam e ecoam partes de quadros de Piero della Francesca, Alfredo Volpi e Henri Matisse, não exatamente como citações, mas antes como pequenas paródias. Outras remetem a situações pictóricas casuais encontradas em elementos arquitetônicos, como casarios (que não deixam de reverberar os artistas citados acima), pedras rejuntadas, muros de tijolos. A articulação dessas referências é o que torna possível uma relação híbrida entre a figuração e a abstração, singular neste corpo de obra. Porém, o cânone abstracionista comparece mais como referência cultural do que exatamente uma linhagem à qual ele se filie.
Montadas em linha, no encontro de umas com as outras as pinturas formam sentenças e, em conjunto, dão conta de sua grande vocação sensorial no uso variado de cores, texturas, formas e movimentos. A maneira ideal de vê-las é neste grande grupo, revisitando os elementos ao longo do tempo e experimentando as sucessivas interrupções, como numa grande tira de filme. Levando a pesquisa pictórica de Miguez para outro lugar, elas se apresentam menos como espaços pictóricos idealizados do que como fragmentos do real.
Rodrigo Moura
Curador
Conheci o Fabio Miguez em meados anos 80 na sua primeira exposição, ainda pertencendo ao grupo “Casa 7”, numa coletiva na saudosa galeria Subdistrito. Ainda jovens, nós dois, iniciamos nossa aventura no mundo das artes: ele como um artista e eu começando, sem saber, a nossa coleção. A frequência das minhas idas à galeria e os nossos encontros casuais acabaram por nos tornar amigos, coisa que guardamos até hoje.
Ao longo de todo esse tempo tenho acompanhado o trabalho do Fábio e tive a oportunidade de adquirir diversos trabalhos das diversas fases pelas quais ele atravessou, somando hoje, entre pinturas, objetos, desenhos e instalações, 14 obras.
Nada mais natural, portanto, que o convite para que ele exponha no IFF fosse realizado e que nos apresentasse seus novos trabalhos em pequenos formatos. Tenho certeza que todos irão adorar.
João Carlos de Figueiredo Ferraz