EXPOSIÇÃO . EDGARD DE SOUZA
EDGARD DE SOUZA
Período: 27 de agosto a 26 de novembro de 2016
Livre para todos os públicos
Ele pulsa por você

Em 2011, em uma conversa pública sobre a obra de Lygia Clark, o crítico Yve-Alain Bois referiu-se a uma categoria de artistas que passam toda sua vida perseguindo um único problema de fundo, a despeito das diferenças epidérmicas entre uma e outra obra (1). Na ocasião, apontou o exemplo paradigmático de Piet Mondrian e da própria Clark que, fosse pintando, produzindo objetos ou promovendo experiências terapêuticas, esteve sempre em busca do que chamou de "linha orgânica". Desde esse dia, penso nessa categoria como aquela dos "artistas espirais", embora seja difícil expandir esse comentário à condição de regra universalmente aplicável para distinguir decididamente as poéticas centrípetas das centrífugas, as que convergem para o mesmo ponto das que avançam abrindo portas para novos motores e metas (2). Na prática, a grande maioria dos artistas oscila um pouco em cada direção.

Vez em quando, porém, é inegável que nos encontramos diante de um notável artista de trajetória espiral, coerente e centrípeta. Edgard de Souza é um exemplo. Sua poética persegue a possibilidade de que a matéria transpire as pulsões involuntárias dos corpos.

Diante de suas obras, ainda que seja possível evocar toda uma série de analogias e comparações com a história da arte, a estética e a cultura material deste século e do passado, as análises críticas tendem a convergir para um mesmo lugar: a desconcertante potência do querer e do temer mais básicos, que não podem ser totalmente domados ou mascarados pela linguagem, pela cultura e pela civilização (3). Dos encostos de cadeira às volutas de madeira, passando pelas mesas de cabeceira e pelos pêlos dos tapetes, todos os objetos e materiais que se formam no labor minucioso de seu ateliê confessam alguma humanidade subliminar – sublingual até. Humanidade, neste caso, despida de seus discursos e dispositivos e tocada por alguma bruta animalidade desejante (4).

No universo de Edgard de Souza, as coisas manifestam traços de figuração do corpo, uma prostração ou excitação que vai além (e fica aquém) da semelhança anatômica com braços, cabeças e pernas. O que esse gesto encena não é exclusivamente a antropomorfia, mas o medo primitivo, o pavor, a fome, o desejo e o gozo (5) - tudo aquilo que enraíza nossa experiência física da vida e que, não obstante, lutamos tanto e sempre por disciplinar, tolher e educar. Veja-se as mesas que acolhem o visitante que adentra a galeria Mesa deitada, Mesa Alongada e Grande pilha de mesas (todas de 2010), a primeira se abstém de sua rígida missão cotidiana e lança-se ao solo, a segunda, “sem educação”, coloca os pés na parede para alongar-se, e na terceira, bom, as peças variam entre a luta, a bagunça e o tesão, dependendo da malícia do observador.

É claro que, em termos objetivos, essas peças não fazem nada disso, elas são esculturas estáticas construídas pelo artista na posição que sustentam e para sempre sustentarão. Ainda assim, quem pode negar que elas são, antes de tudo, mesas e, por isso, sempre interpretadas em comparação com sua posição arquetípica, sua “mesacidade” ortogonal, útil e confiável? O confronto instantâneo e involuntário entre o feito escultórico e o objeto banal referenciado pelos materiais, técnicas e tipologias empregados pelo artista é fundante não apenas para essas obras, mas para toda esta exposição. Ao contrário de outras mostras abrangentes de Edgard de Souza, aqui não há nenhuma representação explícita da figura humana, trata-se de um mundo de objetos, coisas associadas ao cotidiano e que, por oposição à sua apresentação mais mundana, fazem-se corpos em pulsação (6).

Nesse sentido, há duas superfícies hápticas, famosas por seu uso como revestimento e muitas vezes apresentadas como substitutos da pele humana no contato com o corpo, que se destacam como matéria recorrente no caminhar pela exposição. Primeiro, o couro de vaca, com sua pelugem firme, manchas e colorações diversas. Trata-se da matéria-prima dos bidimensionais da série Mancha Falsa (2009-2012) expostos nas paredes no entorno das já mencionadas mesas. Por uma sofisticada técnica de marchetaria, couros de tonalidade distinta são encaixados com tal precisão que se assemelham às manchas naturalmente encontradas nas peles dos animais. Os pêlos correm paralelamente, não há hiato ou desnível substancial na justaposição. Não obstante, seria inquietante encontrar animais com tais pelagens. Em oposição às orgânicas curvas traçadas pela natureza, a geometria, simetria e regularidade dos padrões construídos pelo artista seriam no mínimo aberrantes. Mais que o acaso de um darwinismo alucinado, as formas denunciam escolhas humanas, como se um reflexo de nossa ancestral tendência à composição levasse o homem primitivo a compor as peles dos animais, tatuá-las ou moldá-las com as mesmas padronagens que adere às paredes da caverna (ou de sua casa).

Tatuagem, ornamento, capricho ou – para o checo/austríaco pioneiro do funcionalismo moderno, Adolf Loos – crime, o crime da entrega primitiva aos impulsos que transbordam a racionalidade estrita do que é lógico, eficiente e higiênico. Logo na sala seguinte, o couro de vaca reaparece, revestindo um móvel em forma de voluta (Sem título, 1990). A forma absurda do estofado ecoa o desenho usual (embora igualmente extra-funcional) dos pés entalhados de madeiras apropriados de algum “móvel de vó” e, assim, a peça se recusa a assentar um homem em repouso, sendo ela mesma uma espécie de corpo ou animal. A obscenidade do desejo decorativo que irritava Loos aqui se encarna e quase chega a mugir. Voluta (1989), em madeira, resolve a equação de outro modo, agigantando-se dobrada sobre si mesma em pose uterina (ou masturbatória).

Ao lado, outra mobília absurda (Sem título, 1989) vem revestida do segundo material chave nesta exposição, o veludo. Não bastasse sua sensível maciez morna, o veludo possui uma propriedade única: guarda os traços de quem o toca, transformando o simples sentar-se do homem comum em uma espécie de gravura efêmera. Há quem associe essa propriedade ao sucesso do veludo nas casas burguesas europeias do final do século XIX, suplantando a falta de lastro histórico e cultural dos então novos protagonistas urbanos pela memória automática desse construtor prêt-a-porter de intimidade (7). Na peça em questão, reitera-se a dobra narcísica sobre si mesmo ou sobre seu duplo, postura recorrente na poética de Edgard de Souza (8). Na parede adjacente, o potencial tátil do material se confirma nos desenhos feitos à mão sobre veludo; frágeis, deverão retardar sua efemeridade com o auxílio do trato museal com as obras de arte, outro aparato da modernidade para suplantar a falta de memória (dessa vez, coletiva).

Quando se trata da prática de Edgard de Souza, porém, não basta que esses materiais manifestem sua suscetibilidade ao capricho humano que deixa vazar seu desejo por prazer auto-congratulatório. É preciso que eles mesmos, os materiais, sejam corpos, como na série Conforto (2013-2016) – peles-esqueletos de veludo torcidas em um gestual que hesita entre o êxtase e o desleixo – e em Sem Título (2005) – grupo de vasos de pele de vaca, corpos sem ossos ou estruturas, eretos apenas pela rigidez de sua volumetria.

E assim caminhamos um círculo completo, do objeto reconhecível que cede ao fardo que supostamente não tolera mais até a pele descarnada que recupera sua corporalidade pela resistência da forma. Os sentidos, analogias e desejos interpretáveis em cada obra do artista são múltiplos e abertos e de modo algum deve-se confundir o percurso aqui traçado com uma bula para sua leitura. Antes, o objetivo é evidenciar transladações feitas pelo artista entre a qualidade objetual explicitada pela tipologia e material de suas obras e possíveis indicadores de desejos humanizadas. Você olha para ele, e ele pulsa por você.

A visita à exposição traça uma espiral centrípeta, terminamos em lugar equivalente ao ponto de partida, mas uma camada adentro. A partir daí, temos uma dupla oportunidade. Por um lado, é possível aceitar a sugestão implícita e afrouxar o nó da civilização, entregar-se às pulsões que nos açoitam - mesmo correndo o risco de que o resultado não seja um heroico e disruptivo gozo, mas uma egoísta masturbação ensimesmada. Ou então, percorrendo a espiral em sentido contrário, recolher-se e assistir com tranquilidade enquanto os objetos vivem na virtualidade as vontades que nós mesmos já aprendemos a suprimir ou sublimar.

Em todo caso, é de se esperar que algo acabe mal. A civilização que acumula suficiente mal-estar para que as formas de castração do desejo possam ser canalizadas e esculpidas com tanta presteza e universalidade por um artista como Edgard de Souza cedo ou tarde terá de acertar as contas com o império dos seus sonhos não realizados. Enquanto isso, procuramos manter as aparências e quem mais fala em moral é quem menos pratica a ética: pano de chão gasto e restaurado para simular uma ingenuidade que já não volta mais.

Paulo Miyada
(1) Debate com participação de Guy Brett, Yve-Alain Bois, Ricardo Basbaum e Suely Rolnik no Sesc Pinheiros, Setembro de 2011. Colaborei como tradutor consecutivo da conversa.

(2) Nesse sentido, essa classificação epstemologicamente falha (demasiado arbitrária e conjectural) remete às categorias da fictícia enciclopédia chinesa “Empório celestial de conhecimentos benévolos” aludida por Jorge Luis Borges no conto “O idioma analítico de John Wilkins”. In: BORGES, Jorge Luis. Outras inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

(3) Tem sido assim com as principais leituras críticas da obra do artista, incluindo as de Ivo Mesquita (MESQUITA, Ivo. “Edgard de Souza: Esculturas”. São Paulo: Galeria Luisa Strina, 1997; Carlos Basualdo (BASUALDO, Carlos. “Edgard de Souza”. São Paulo: Cosac & Naif, 2000; Lisette Lagnado e Adriano Pedrosa (LAGNADO, Lisette. “Edgard de Souza, Loucura e ressaca” e PEDROSA, Adriano. “Edgard de Souza, A Voluta e outros trabalhos”. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2004).

(4) Tal hipótese de convergência, é importante lembrar, não implica em homogeneidade na obra do artista. Iniciada na década de 1980, sua produção eminentemente escultórica já conjugou verbos tão díspares quanto costurar e fundir, forrar e escavar, vestir e lixar, restaurar e desgastar, redundando em um também variado bestiário de objetos com os mais distintos materiais e tipologias. Tamanha diversidade não diminui a coerência do que faz, antes atesta a intensidade das pulsões (e pulsações) que atravessam o seu trabalho.

(5) Em caráter tentativo, Adriano Pedrosa esboçou uma listagem de “tipos” e assuntos na obra de Edgard, atentando aos humores e pulsões manifestas por cada grupo de peças. Entre seus tipos, estão: esculturas barrocas, esculturas clássicas, esculturas decadentes, esculturas desejantes et cetera.

(6) A bem da verdade, o visitante verdadeiramente atento poderá notar que existe um autorretrato algo perverso desenhado com o dedo sobre o veludo na seção final da mostra; signo adequdo à naturza narcísica do veludo, esta exceção fortalece a regra geral da exposição.

(7) O assunto remete aos escritos de Walter Benjamin sobre a cidade moderna capitalista. Seria exagero dizer que o veludo prenuncia a importância do “touch” nos aparelhos “touch screen”?

(8) Na verdade, esta é a postura chave de toda sua produção, ponto culminante ou originário de sua trajetória espiral.

(9) Os mais conectados com a música popular brasileira do começo dos anos 1990 podem reconhecer no título deste texto um verso da canção “Eu sei (na mira)”, de Marisa Monte: “O meu coração. / É um músculo involuntário. / E ele pulsa por você”. A graça está em remover o verso do contexto e deixar ele expirar suas conotações eróticas.
EDGARD DE SOUZA
Sem Título
(Mesa alongada)
EDGARD DE SOUZA
Sem Título
(Vasos)
EDGARD DE SOUZA
M-22 Pied de poule
EDGARD DE SOUZA
M-23 Camouflage
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