ARTE PARA TODOS! Liberação e Consumo Curadoria: Mirtes Marins de Oliveira Período: 05 de julho a 13 de agosto de 2016 Livre para todos os públicos
Que chance? O meu destino desenvolveu-se enquanto eu mantinha os olhos tapados e já nem me reconheço nele. Brutalmente a qualquer momento pode surgir a vida, eu sei que não estou preparado.
(Rogério Duarte psicografado por Rogério Duarte, in Navilouca, 1974)
A exposição “Arte para todos! Liberação e Consumo” foi elaborada, e ampliada em número de artistas e trabalhos, a partir de outra exposição: “contra o estado das coisas”, na Galeria Jaqueline Martins, em 2014, que apresentava de forma panorâmica, e em um conjunto único, as ações de Equipe3, de Arte/Ação, e de cada um de seus membros isoladamente.
Equipe3 foi nome atribuído a posteriori ao grupo formado desde 1971 por Lydia Okumura (1948), Genilson Soares (1940) e Francisco Iñarra (1947-2009). Já Arte/Ação era o resultado de uma série de vivências propostas por Genilson Soares e Francisco Iñarra, a partir do momento no qual Okumura deixou o país para trabalhar nos Estados Unidos, em 1974. O apelido passou, com o tempo, a designar a dupla.
Esses artistas se envolveram de forma sistemática nas atividades sob a direção de Walter Zanini e sua equipe no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). Ali, a partir de 1971, com as exposições “Jovem Arte Contemporânea” (JACs) é enfatizada a ideia de um museu laboratório, apresentando trabalhos conceituais, processuais e desmaterializados (1) , exercícios recorrentes no Brasil já em décadas anteriores, tendo como exemplo as experiências de Flavio de Carvalho que remontam aos anos 1930. Mas, ao final da década de 1960, essa premissa processual torna-se a plataforma da qual os jovens artistas do mundo todo se lançam, como demonstram os experimentos expositivos de Harald Szeemann em “When Attitudes Become Form”, em Berna, Suíça, ou Frederico Morais em “Do Corpo À Terra”, em Belo Horizonte.
No Brasil, com as dificuldades de circulação da produção internacional, em particular a experimental, e com a vigência de censura nesse período da ditadura, o MAC-USP era um dos poucos lugares, em São Paulo, de divulgação e debate dessa perspectiva cultural.
Produção que ao final dos anos 1960, e início da década seguinte, está marcada pela eclosão de uma cultura juvenil e questionadora de valores - políticos, morais, sexuais, familiares, entre outros - da sociedade que se desenvolve no período da Guerra Fria. Os artistas, de forma especial, indagam a tradição da arte e principalmente seus sistemas de seleção, legitimação e circulação promovendo desconstruções e a ampliação dos processos criativos que poderiam, a partir desse questionamento, alcançar e inverter proposições dando autonomia e poder ao espectador. Em “Arte para Todos! Liberação e Consumo” buscou-se mostrar como essas características constituem uma marca que impacta, com as devidas diferenças contextuais, não só a produção daquele período, mas dos anos 1980 e atuais.
Diante de uma pergunta sobre a definição das proposições de Equipe3 e Arte/Ação, Genilson Soares afirma que o horizonte do grupo, e de uma forma geral, dos artistas de sua geração, era a produção de “arte para todos! liberação e consumo”. (2) Resposta emblemática das ansiedades que vão perdurar pelas décadas seguintes: para além das questões específicas partidárias pelas quais o país passava, existia um movimento de contracultura que pregava a liberação sexual e tomava o corpo como eixo mínimo pelo qual essa liberação se construía; o contato com experimentos de ampliação da percepção, via religiões não ocidentais ou de drogas; a psicanálise; a música jovem, publicações underground, o desbunde (3). Desdobra-se a noção de política, não mais restrita aos discursos de direita ou esquerda, mas considerada como mergulho nos processos vivenciais e na desconstrução de explicações ideológicas totalizantes sobre a realidade.
Ficaram para trás as propostas revolucionárias com a marca da dimensão pedagógica e da arte das esquerdas dos anos 1960, que tinham como foco empático o proletário, que foi substituído – em termos de identificação por parte de artistas e público - pelo interesse nas minorias: mulheres, negros, homossexuais, culto afro-brasileiros, marginais de uma forma geral. (4)
Não me interessam talentos estou farto de querer achar o novo no vestido de novo. Hélio Oiticica, “Experimentar o Experimental”, in Navilouca, 1974
O exercício do “sair fora” das condições consolidadas de vida familiar e escolar passa a ser um rito de passagem obrigatório nessa geração dos anos 1970. Nesse caldo questionador que coloca abaixo todo o estabelecido, uma percepção parece ser recorrente: a bandeira que propõe consumir o consumo para que artista e obra não se tornem apenas mercadoria, o que de fato é. Ou, que na produção inevitável de tudo na sociedade capitalista, o descartado ou os objetos em vias de obsolescência pudessem ser reconduzidos ao consumo (5) e oferecidos sob a forma de arte efêmera ao espectador. Utilizar essa estratégia em proveito próprio e crítico se alinha com um momento de re-ativamento da noção de antropofagia, via a influência dos poetas do concretismo paulista nas produções tropicalistas. Consumir é comer, alimentar corpo e os sentidos, e liberar a mente para possibilidades outras.
Um outro interesse se configura nessa produção, que novamente vai reverberar nos anos posteriores e continua a fazer ecos em produções contemporâneas: as intervenções ambientais surgem da percepção do papel do artista como um provocador mínimo, que com ruídos sutis nos espaços da vida – o ambiente - estimulam a consciência crítica e lúdica do espectador.
A pergunta recorrente a partir da produção dos artistas da década de 1970, que é refeita a cada obra contemporânea apresentada desde então, é aquela que busca a definição da arte. A constância sistemática indica uma necessidade retórica de reafirmar o indefinível. Sem pretender que se responda ao solicitado, essa exploração de definições e limites aponta para o caráter aberto da atividade artística que gera, com essa abertura, múltiplas possibilidades de compreensão e respostas sob a forma de ação artística, poesias visuais e outras intervenções com as palavras, com variadas perspectivas urbanas (feministas, homossexuais, marginais etc), as experimentações com o corpo, a produção em diálogo e coletiva.
Muitas dessas perguntas/respostas continuam a estimular e servir de pauta para artistas contemporâneos, o que não significa, no entanto, que se trate de reencenações nostálgicas. Como exemplo, cabe uma nota contextual que recoloca, de várias maneiras, a questão do corpo que experimenta. Desdobrada das experimentações radicais das décadas anteriores, o corpo que experimenta se depara, nos anos 1980, com a disseminação da AIDs, que atribuiu uma nova camada à liberação sexual que, por sua vez, estabeleceu novos problemas para a plataforma artística experimental.
(1) Jaremtchuk, Daria. Jovem Arte Contemporânea no MAC da USP. Dissertação de Mestrado defendida na ECA-USP, 1999, p.2.
(2) Em entrevista realizada pelo curador Toby Maier, em 2014, não publicada.
(3) Cf. Heloísa Buarque de Hollanda. Impressões de Viagem – CPC, vanguarda e desbunde. (1a edição 1980). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
(4) Cf. Heloisa Buarque de Hollanda, op cit, pp.75-76.
(5) Fiz, Simón Marchán. Del Arte Objectual al Arte de Concepto. Akal: Madrid, (1974), 1986, p. 266.
A década de 70 no Brasil foi muito profícua no meio artístico, onde as manifestações romperam todos os limites com sua criatividade transgressora. Em São Paulo, em especial no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, na época sob a direção de Walter Zanini, muitos artistas utilizaram novos meios de expressão graças aos equipamentos adquiridos pelo MAC/USP.
Por meio das exposições intituladas JAC (Jovem Arte Contemporânea), os artistas tiveram a oportunidade de experimentar novos equipamentos, que surgiam na época, como filmadoras de vídeo e máquinas de xerox. O fato de haver uma dura censura no país não impediu que artistas realizassem suas obras por meio de poéticas que subvertiam o status quo e que, ao mesmo tempo, não eram óbvias ou panfletárias.
Graças à uma instituição e uma diretoria que abrigavam e incentivavam essa produção num período político tão difícil, foi possível não apenas que essa produção fosse realizada, mas também preservada, o que possibilita o acesso a ela décadas depois.
Arte para Todos! Liberação e Consumo, com curadoria de Mirtes Marins de Oliveira, reúne uma pequena seleção dessa produção, mostrando o espírito dos anos 70, década na qual a arte, a música e a moda foram extremamente libertárias.
O Instituto Figueiredo Ferraz, que tem como missão apresentar a produção de arte contemporânea como meio de entendimento e reflexão sobre a época em que vivemos, entende que esta importante e histórica mostra nos coloca em contato com o que era produzido na década de 70, nos ajudando a compreender este momento de transformação de costumes, sociais e políticos em nosso país e no mundo, sempre de forma poética e por meio da arte.
Agradecemos a parceria com Jacqueline Martins pela possibilidade de apresentarmos esta importante exposição ao público de Ribeirão Preto.
Instituto Figueiredo Ferraz
REGINA VATER (Rio de Janeiro, Brasil, 1943) Bexiga, 1978 Fotografia
EQUIPE 3 - Francisco Iñarra, Genilson Soares, Lydia Okumura Documentação de incluir os excluídos, 1972. Copias coloridas de xerox
DANIEL DE PAULA (Boston, E.U.A, 1987) A desmaterialização, 2014 Ação, registro fotográfico, texto datilografado e livro
MARTHA ARAÚJO (Maceió, Brasil, 1943) Habito/Habitante, 1985 Capa e documentos
REGINA VATER (Rio de Janeiro, Brasil, 1943) Ricasopa, 1978 Fotografia
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